Vozes da Europa: Comentário 3

Vozes da Europa: Comentário 3

Comentário do momento por:Maria João Militão Ferreira

A Europa como experiência mitológica: o passado e o presente do projeto europeu

Uma das mais importantes construções mitológicas da construção europeia respeita à ideia de que na origem da integração europeia encontra-se a vontade de um conjunto de estados que, com base numa racionalidade puramente utilitária, acomodaram a evolução da integração europeia à necessidade de protegerem os seus interesses estratégicos (Kaiser & Leucht, 2008). Na verdade, e como argumentam Kaiser e Leucht (2008), o projeto europeu e a própria criação da União Europeia (UE) têm na sua origem o estabelecimento de redes transnacionais de ação política formadas por atores supranacionais, intergovernamentais, governamentais e não-governamentais que solidificaram o modelo da governação multinível como sistema regulatório fundamental do processo decisional na UE. Apesar da pertinência do argumento de Kaiser e Leucht (2008), é notório que o processo de ramificação entre os setores da integração nunca foi automático e que existe uma clivagem entre as áreas onde a União Europeia tem competências legislativas exclusivas, partilhadas ou complementares – designadamente as áreas de integração económica – e as áreas de cooperação política onde a UE não possui poder legislativo, nomeadamente a Política Externa e de Segurança Comum e a Política Comum de Segurança e Defesa (Ferreira, 2016).

A natureza híbrida da União Europeia e a persistente intergovernamentalidade das políticas europeias no domínio externo e securitário têm limitado a europeização das linhas de ação externa dos estados-membros e impedido a UE de se assumir como um ator em relações internacionais (Ferreira, 2016). A falta de autonomia estratégica da União Europeia, lacuna que os tratados de Maastricht e de Lisboa não conseguiram resolver, conduz Ian Manners (2010) a argumentar que a identidade internacional da União Europeia assenta em frágeis narrativas mitológicas. O mesmo Ian Manners, em 2002, afirmava que a União Europeia devia de ser conceptualizada como uma potência normativa (Manners, 2002). Os dois elementos inerentes ao conceito de Manners (2002) – a capacidade de projeção de potência e a capacidade de produzir valores – não têm tido, porém, tradução empírica deixando a União Europeia num vazio estratégico e moral (Mahbubani, 2025). Tal vazio estratégicoe moral, de que a Gronelândia é apenas um entre vários exemplos, acontece num contexto histórico perturbador e único em que os europeus são obrigados a reconhecer que a ideia da autonomia política europeia que esteve na base da criação da União Europeia pode não passar de um mito reificado por uma tecnocracia por diversas vezes cega às andanças do mundo (Mahbubani, 2025). Como Mahbubani (2025) refere, a propósito da recente convergência entre Washington e Moscovo sobre o futuro da Ucrânia, a União Europeia está a confrontar-se com as consequências de um erro estratégico fundamental: o de ter assumido que os interesses geopolíticos europeus iriam sempre e inevitavelmente coincidir com os interesses dos Estados Unidos da América. Tal erro estratégico pode resultar em vários cenários futuros, designadamente a dissolução da Organização do Tratado do Atlântico Norte ou uma (até agora impensável) parceria estratégica entre a UE e a China que acautelasse, nomeadamente, os investimentos chineses em África (Mahbubani, 2025).

Note-se que, entre janeiro e fevereiro de 2025, os Estados Unidos designaram a União Europeia como sendo uma ameaça aos interesses norte-americanos nos domínios tecnológico, económico e, desde o discurso de J.D. Vance na Conferência de Segurança de Munique, no domínio político (Spatafora, 2025). Neste cenário, a bilateralização e fragmentação das relações entre os estados europeus e os EUA pode vir a tornar-se uma realidade, o que colocaria em causa a viabilidade da União Europeia enquanto ator geoeconómico e geopolítico (Spatafora, 2025). O “abandono” do apoio norte-americano ao projeto da integração europeia vai obrigar os estados europeus a reequacionarem as suas garantias de segurança e defesa (Spatafora, 2025). Tal reflexão só parece ser, todavia, viável no quadro da convocação de uma nova Conferência sobre o Futuro da Europa que, e através da pronúncia dos cidadãos europeus, legitime um eventual acréscimo da despesa com segurança e defesa e o potencial desinvestimento no modelo do estado social europeu (Parlamento Europeu, 2024). No entanto, é preciso ter em consideração que, ao contrário da ‘Europa Global,’ a ‘Europa Social’ não é um mito (Manners, 2010).

Referências

Ferreira, M. (2016). A União Europeia e as Dinâmicas da Europeização: uma Abordagem Introdutória. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa.
Kaiser, W., & Leucht, B. (2008). Informal politics of integration: Christian Democratic and transatlantic networks in the creation of ECSC core Europe. Journal of European Integration History, 14(1), 35-51.
Mahbubani, K. (2025). It’s Time for Europe to do the Unthinkable. Foreign Policy. February 18, 2025. After Munich, It's Time for Europe to Do the Unthinkable.
Manners, I. (2002). Normative power Europe: a contradiction in terms? Journal of common market studies, 40(2), 235-258.Manners, I. (2010). Global Europa: Mythology of the European Union in world politics. Journal of Common Market Studies, 48(1), 67-87.
Parlamento Europeu (2024). “Europa Social: em que consiste a política social da UE?” Temas. Parlamento Europeu. Europa social: em que consiste a política social da UE? | Temas | Parlamento Europeu.
Spatafora, G. (2025). The Trump card: What could US abandonment of Europe look like? Briefs. European Union Institute for Security Studies. Brief_2025-06_Trump card.pdf
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